Um dia fui pega por uma grande questão: por que não falamos sobre saúde e sexualidade para mulheres lésbicas e bissexuais? Será que os riscos são os mesmos? Por que nenhum médico nunca me disse o quão exposta eu poderia estar e nem me ensinou como me prevenir?
De uma indignação pessoal nasceu este projeto. Por que nenhum ginecologista que eu passei conseguia me orientar sobre os cuidados que eu deveria ter ao me relacionar com outra mulher? Será que eu que dei azar a vida toda ou esta era uma situação corriqueira? Arregacei as mangas e comecei a jornada mais intensa e transformadora da minha vida.
A descoberta: o sexo entre mulheres ainda é um tabu e não falamos sobre isso.
As pesquisas começaram. Me debrucei no computador na busca por artigos acadêmicos, reportagens ou qualquer outro material que discutissem questões de saúde pública para mulheres lésbicas e bissexuais. O primeiro baque veio: descobri quase não existem esforços do governo para atender essa população.
A “Pesquisa de Conhecimentos, Atitudes e Práticas na População Brasileira” (PCAP), realizada pelo Ministério da Saúde em 2013 constatou por amostragem que a população lésbica é de aproximadamente de 3.125.300 mulheres. Este é o único dado disponível sobre essa população e não há nenhum levantamento parecido sobre mulheres bissexuais.
Como podemos falar de saúde, prevenção e conscientização sem sabermos exatamente as necessidades e especificidades desse grupo? Chegamos ao ponto fundamental do projeto: a falta de diálogo, de atenção e conscientização sobre os perigos que mulheres homossexuais e bissexuais estão expostas frente às DSTs.
No decorrer da caminhada comecei a ter pequenas pistas sobre como a medicina lida com esse assunto. Apesar de existirem iniciativas e grupos que lutem pelo atendimento humanizado dentro dos consultórios, o dialogo médico-paciente por vezes se torna impessoal e distante. Em um dos estudos que usei como base no processo investigativo, a seguinte frase me chamou a atenção:
“[…] a saúde sexual das mulheres […] permaneceu subsumida à preocupação com a reprodução ao longo da trajetória das políticas de atenção à saúde das mulheres” (ALMEIDA, 2005, p. 302)
Nesta aspas fica claro que o foco da medicina em relação ao corpo da mulher é a reprodução. Então, como tratar a relação entre duas mulheres?
Neste ponto entendi que o problema transpassava questões de educação ou iniciativas governamentais com foco na população de mulheres que se relacionam com mulheres. Percebi que os médicos também seriam um dos públicos principais deste projeto.
A frase cita acima também nos faz refletir sobre a objetificação do corpo da mulher e a anulação dos desejos femininos, como que de certa forma nós mulheres não tivéssemos direito de gozar dos prazeres e nos coubesse somente o papel reprodutivo.
Ouvir para aprender
Após a extensa pesquisa contextual e investigativa, avancei para a segunda etapa: conversar com mulheres que se relacionam com mulheres e com ginecologistas para entender um pouco melhor a realidade de cada um em relação ao tema.
De frente com elas
Primeiro conversei com sete mulheres que aceitaram dividir suas histórias comigo. Como dialogar sobre um tema tão íntimo com alguém que você nunca viu? Quebrar a barreira da falta de intimidade foi o grande desafio dessa etapa.
Para facilitar e padronizar esse processo, um roteiro de entrevistas foi cuidadosamente pensado e estruturado. Dividido em três partes, o diálogo se iniciava com um pouco da história de cada uma, abordando temas como o processo de descoberta da sexualidade, a relação familiar e a aceitação por parte da família. Posteriormente, questionamentos sobre a sexualidade e o conhecimento frente às melhores práticas de proteção durante relações sexuais tomava conta da conversa.
E então os problemas enfrentados por nós, mulheres, apareceram. Falo nós, pois percebi que os obstáculos e incomodos eram os mesmos que os meus.
Dentro dos consultórios a falta de empatia, desconforto e uma relação médico-paciente nada positiva. O resultado é a troca frequente de médico ou o abandono dos cuidados necessários. Algumas, para evitar passar por situações constrangedoras pararam de frequentar o ginecologista.
Do lado de fora as inseguranças eram ainda maiores. Devido a dificuldade em acessar informações confiáveis, grande parte das entrevistadas não sabiam ao certo os riscos que corriam e nem como poderiam se protejer da melhor forma. Sendo assim, não faziam o uso de nenhum tipo de proteção durante suas relações.
Mas e os médicos?
Foi fundamental conversar com esse público para tentar entender o por que da falta de atenção dentro dos consultórios e as dificuldades em lidar com esse publico.
A descoberta foi que, muitas vezes, os médicos não sabem como atender estas pacientes por falta de informação. Conversei com dois médicos e uma estudante que estava no último ano da faculdade. O panorama mapeado foi que dentro das universidades de medicina pouco se fala sobre saúde e sexualidade LGBTQ+. Os estudantes não recebem as informações necessárias sobre como lidar com esse segmento da população. Por outro lado, os mais interessados acabam trilhandos os próprios caminhos para adquirir conhecimentos mais profundos.
Primeiras conclusões
Depois da rodada de entrevistas foi possível identificar algumas falhas e oportunidades para desenvolver um novo serviço. A intenção de criar um ambiente seguro no qual fosse possível encontrar informações, serviços e apoio especializado apareceu.
Conhecendo o público-alvo
Como a solução é de base tecnológica, era importante entender como as brasileiras se relacionam com a tecnologia e quais são seus hábitos digitais. Desenvolvi, então, uma pesquisa quantitativa afim de entender estas relações.
Juntando as conversas inicias e a pesquisa exposta acima, foi possível identificar de 4 arquétipos de mulheres que poderiam usar o serviço. Estes, também são conhecidos pelo nome de “usuários extremos”. As mulheres foram divididas da seguinte forma: Discreta, Desencanada, Assumida e Hetero.
A partir destas definições, criei uma linha do tempo da vida de cada perfil, com pontos importantes de cada uma. Cruzei os momentos em que as situações se repetiam em cada arquétipo e criei um mapa de oportunidades. Esse diagrama foi o norte para o resto do desenvolvimento do serviço.
Para algumas mulheres, a ida ao ginecologista pode ser um momento extremamente desconfortável e rodeado de inseguranças quando, na verdade, a deveriam se sentir seguras e confortáveis em conversar com o profissional.
A relação ginecologista-paciente, deve ser pautada em um diálogo aberto e sincero, sem julgamentos. Mas, conforme analisado durante as pesquisas, esse não é o cenário, de uma maneira geral, que temos.
Definições — prazer, Gina
O incômodo em constatar que as mulheres — em especial lésbicas e bissexuais,— em momentos que deveriam ser acolhidas com respeito, eram tratadas de forma abusiva e/ ou preconceituosa, fez surgir a ideia da criação de uma comunidade, com o objetivo de conectar as mulheres com profissionais de saúde capacitados, empáticos e interessados em se atualizar constantemente.
Sendo assim, um serviço que transforma a experiência de usuário das mulheres brasileiras em relação a saúde tomou forma e deu vida a “Gina”, uma plataforma digital multilateral que engloba diversos aspectos sobre o cuidar da saúde da mulher.
“Lutamos pela emancipação feminina. Acreditamos que a saúde é um dos caminhos para empoderar a mulher brasileira e, por isso, oferecemos todo o apoio necessário para que as mulheres se sintam seguras ao tratarem dos seus corpos. Falamos de sexo sem tabus e preconceitos. Somos a revolução da saúde da mulher no Brasil.”
Personas e Jornadas do usuário
Após a estruturação de todos estes elementos foi possível criar as personas e as jornadas do usuário de cada uma, além da persona do médico. A seguir está um dos perfis criados:
Desenvolvimento
Depois de todo o cenário construído e mapeado, chegou o momento de desenvolver o serviço.
A proposta foi criar uma plataforma que conectasse de forma inteligente e facilitada médicos ginecologistas e mulheres em busca destes profissionais. Por isso, inicialmente, o core do serviço era criar uma funcionalidade assertiva de busca, a partir das preferencias de cada usuária.
Além dessa função, a plataforma seria um repositório confiável de informações e dicas. Já que, durante as pesquisas, foi identificada a necessidade de um lugar acessível no qual fosse possível encontrar referências confiáveis sobre métodos preventivos, riscos, cuidados com a saúde, etc.
Também desenhei um chatbot capaz de fazer pequenos diagnósticos e que encaminhar a usuária para o profissional mais indicado. Além disso, a Gi (nome da robozinho) está preparada para tirar as mais diversas dúvidas em relação aos cuidados com a saúde, formas de prevenção e tudo mais.
Esta função também é importante porque, de certa forma, não obriga a usuária a se identificar para obter alguma informação. Ponto importante para aquelas que ainda tem algum dificuldade ou impecilho em assumir sua sexualidade.
Uma ferramenta para a mulher acompanhar seu ciclo menstrual, um drive para arquivar e organizar os exames feitos são algumas de outras funções desenhadas para o serviço. A ideia é centralizar tudo que for relacionado aos cuidados com a saúde da mulher em um só lugar.
Já para os médicos as principais funcionalidades desenhadas foram uma solução para gestão de agenda — algo que nas entrevistas foi identificado como o maior ponto de dor dos médicos — e uma parte exclusiva para atualização profissional e aprimoramentos a partir de pílulas de conhecimento. Neste sentido, preparar o médico para atender os mais diversos perfis e fazer com que ele esteja sempre atualizado, de forma simples, rápida e eficiente é essencial.
Ao invés de desenvolver um aplicativo nativo, escolhi seguir com a estratégia de Web App. Como expliquei neste artigo, os Progressive Web Apps (PWC), são uma ótima maneira para desenvolver plataformas responsivas que funcionem como apps em smartphones.
Além disso, são uma alternativa realmente boa para ultrapassar a questão de download e desinstalação recorrente de aplicativos, já que não é necessário baixar para usar. Não podemos esquecer que os usuários tendem a desinstalar rapidamente apps que não são usadas com frequência.
Em relação a performance, os PWC tendem a ser tão rápidos e seguros quanto apps nativos, já que conseguem armazenar informações em cash. Permitem, também, o uso de notificação por push, por exemplo. Enfim, não deixam nada a desejar se comparado a um aplicativo nativo.
Ta bem. Mas qual a cara desse negócio?
Após decididas as funcionalidades e tecnologias, comecei o desenho dos fluxos de navegação, wireframes e das telas. Foram mais de 100 telas desenhas, para as versões desktop, tablet e smartphone.
Wireframes
Para validar o fluxo de navegação e testar as funcionalidades um protótipo de baixa fidelidade dos wireframes foi desenvolvido.
Fiz a primeira rodada de testes de usabilidade. Os fluxos estavam corretos e as funcionalidades faziam sentido para os usuários. Sendo assim, comecei a desenhar o layout final das telas e a identidade visual.
Identidade Visual e Style Guide
Para facilitar, padronizar e garantir a consistência em todas as telas e versões criei um Design System, utilizando tokens e componentes para facilitar a gestão e a conexão com os desenvolvedores. Foram criados mais de 1300 componentes, divididos em tokens, base components, components e patterns. Junto com os elementos existe uma folha de explicação contendo as formas de uso de cada elemento e seus respectivos estados.
Os elementos foram projetados para dois temas diferentes (claro e escuro). Vale ressaltar que boas práticas em questões de acessibilidade foram seguidas e implementadas para garantir um bom uso da plataforma pelos diversos públicos.
Aplicação da Identidade
Por fim, apliquei a identidade aos wireframes desenhados. A seguir vocês podem conferir as telas finais a o vídeo de divulgação. As telas abaixo são referentes a primeira identidade desenvolvida. Atualmente estamos na versão 2.0 de identidade da plataforma.
imagens da primeira versão da plataforma - Material produzido por Helena Duppre - Todos os direitos reservados.
Segunda versão da plataforma - Material produzido por Helena Duppre - Todos os direitos reservados.
Conclusão
Ao conversar com outras mulheres que se relacionam com mulheres sobre saúde e sexualidade, percebi que não estava sozinha no quesito momentos desagradáveis e embaraçosos e começou a entender e confirmar a maioria de suas hipóteses em relação ao assunto.
Por que não falamos sobre saúde e sexualidade de mulheres que se relacionam com mulheres? Será que as lésbicas realmente não correm riscos de se infectar com doenças como HPV, sífilis e até mesmo HIV? O que se confirmou é que essas indagações e a falta de diálogo giram em torno de pontos baseados em tabus, preconceitos e falta de informação.
Abrir espaço para discussões sobre o tema dentro dos cursos superiores de medicina e durante a formação dos profissionais da saúde é um fator fundamental para a mudança nos cuidados com a saúde das mulheres. Necessitamos de peritos mais empáticos, humanos e livres de preconceitos, que levantem as mangas e busquem enxergar novas possibilidades dentro da medicina.
Também que é necessário ouvir o próximo para entender a realidade de outrem e, assim, ter os insumos suficientes e corretos para criar algo realmente relevante para a sociedade. Ora, não seria esse o atual papel do design?
O design, por sua vez, se torna cada vez mais vital para a sociedade atual. O pensar e o olhar daqueles designers que estão realmente dispostos a observar e refletir sobre novos caminhos da sociedade começam a transformar efetivamente as comunidades ao redor do mundo.
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